O Repoussoir

Esse artigo foi publicado revista IDE: psicanálise e cultura, pp 170-172, vol43, n 72, dez 2021, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. ISSN 0101-3106


“Mas quando a Aurora de belas tranças trouxe o terceiro dia, logo cessou o vento, sobreveio a calmaria, e Ulisses, desde o cimo de uma onda enorme, avistou, com penetrante olhar, a terra que estava muito próxima ... assim Ulisses se quedou arrebatado, ao contemplar a terra e a floresta”.

Homero, Odisseia, Rapsodia V

Após séculos ocupando um papel apenas secundário a paisagem, entendida como noção, como esquema simbólico da natureza e baseada em regras próprias de composição, teve início nas artes através da pintura holandesa e italiana, entre os séculos XV e XVI, quando finalmente deixou de ser apenas elemento decorativo e assumiu posição central em obras renascentistas e se consagrando, no romantismo, como tema central no desenvolvimento do conceito estético do sublime.

A elaboração das regras da perspectiva garantiu essa evolução, sendo determinante para essa mudança de status. Perspectiva é a técnica de iludir o olhar conferindo tridimensionalidade às bases bidimensionais da arte. Mas nem só da perspectiva se valeram os artistas no intuito de criar a terceira dimensão onde ela não existe. O “Repoussoir” surgiu como um recurso de composição que amplia a ilusão de profundidade na tela. O termo, em francês, deriva do verbo “repousser”, que significa repelir. Geralmente, mas não exclusivamente, o “repoussoir” é disposto na borda da cena e em tom mais escuro. Ele pode ser representado por uma árvore, uma cortina, ou qualquer elemento criativo proposto pelo artista. O contraste entre os planos aumenta a noção de profundidade, criando a ilusão de que os elementos principais da cena foram empurrados para o fundo. Também auxilia no enquadramento dos elementos principais da cena conduzindo o olhar do observador das bordas para o motivo central. Pode ainda criar um vetor entre o elemento chave do repoussoir e a paisagem ou algum elemento em destaque. Em uma paisagem típica, sem o “repoussoir”, o olhar do observador percorre planos mais próximos entre si, sem muita profundidade.

Obras renascentistas e romanticas apresentam com maior frequência o Repoussoir. A titulo ilustrativo podemos citar algumas obras do pintor holandês Vermeer em que o recurso é utilizado, “Leitora à janela” de 1657-59, “Oficial e moça sorridente” de 1658 e “Alegoria da Pintura” de 1666-67. Caspar David Friederich, pintor romântico alemão, também fez uso desse recurso em várias obras, em muitas dessas suas personagens foram pintadas de costas, de forma a conduzir nosso olhar para a paisagem, como, por exemplo, em “Der Wanderer über dem Nebelmeer”, ou “Andarilho acima do mar de névoa”, de 1818. Aprecio esse recurso. O repoussoir me convence que, se bem usado, ele pode conferir maior eloquência às minhas fotografias de paisagem. Mas devo reconhecer que posso estar sendo iludido por um recurso cuja função é iludir.

Llanquihue e os vulcões

"Lago Llanquihue, Osorno y El Calbuco", Puerto Varas, 2013.

Em “Lago Llanquihue, Osorno y El Calbuco”, os vetores de condução do olhar são as linhas curvas do ondular das águas. Elas nos conduzem para o vulcão Osorno, que está à esquerda, levemente mais iluminado que o El Calbuco, à direita, e nesse vetor cria uma certa tensão abalando a harmonia simétrica entre os dois vulcões no terço superior da paisagem.

El Calbuco

"La Roca y El Calbuco", Puerto Varas, 2013.

Em “La Roca y El Calbuco”, uma rocha vulcânica expelida pelo Osorno contempla a distância o lago Llanquihue e o vulcão El Calbuco. O recorte vertical estreito aumenta a distância entre o repoussoir e os elementos da paisagem, intensificando um clima de solidão, apanágio das montanhas rudes, intempestivas, eruptivas.

baía redonda

"Baía Redonda", El Calafate, 2012.

Na foto “Baia Redonda”, o matacão em primeiro plano ocupa quase um quarto do fotograma, diante dele a Baia Redonda congelada e o silêncio do inverno patagônico.

bloomington

"Indiana", Bloomington, 2009.

Na foto “Indiana” banco e galhos de uma árvore são os elementos que compõem o repoussoir nessa paisagem urbana da periferia tranquila de Bloomington/IN. A solidão aqui se repete.

A única personagem humana dessas imagens está presente nessa foto, mas em escala tão reduzida, que dificilmente se distingue na paisagem. Rochas e banco cumprem, nessas imagens, função análoga a dos personagens de Friederich, além de direcionar o olhar, sugerem ao observador um ponto de contemplação. Trata-se de um convite ao observador para empreeender a mesma viagem do fotógrafo e se deixar arrebatar pela paisagem.

Mario Lucio Sapucahy
Mário Lúcio Sapucahy é repórter fotográfico e Doutor em Geografia.